A SENHORA DO KANUM
A SENHORA DO KANUM
A SENHORA DO KANUM
(Reflexões sobre a devastação da reserva de moralidade)
Mais do que uma reflexão sobre a crise política, escrevo para exorcizar meus fantasmas e reduzir o índice de angústia que tem me sufocado há três meses, quando os casos de corrupção envolvendo o Governo começaram a ser denunciados.
Para quem recebeu aquela minha carta aberta ao Lula, em agosto do ano passado, sabe que as denúncias não me surpreenderam. Eu só não sabia quando elas chegariam ao público, mas sabia que a temperatura das ganâncias estava em ponto de ebulição.
Apesar de ser um dos meus favoritos, rejeito o determinismo de Machado de Assis quando um de seus personagens (esqueci em qual dos romances) diz que “a ocasião não faz o ladrão, faz o roubo; o ladrão já nasce feito”. Mas, acho que vocês se lembram de eu ter falado de Delúbio, não? De Marcelo Sereno? Pois bem, Delúbio, para mim , personifica aquilo que os criminalistas chamam de “corpo de delito”. E não é de agora, nem começou com a chegada de Lula ao Palácio do Planalto. Vem de longe. Com ele se justifica o determinismo machadiano.
Mas agora peço que tenham paciência e me ajudem nessa reflexão. Quando estourou a crise, passei a ler a reação daqueles que há alguns séculos saqueiam (e sacam) nossos bens, o produto de nosso trabalho e, em algumas circunstâncias, até mesmo nossos sentimentos. Varei madrugadas atenta a todos os jornais brasileiros que permitem leitura via internet. Até mesmo jornais pequenos, da Amazônia, do Nordeste. Todos os neurônios estavam em alerta máxima na tentativa de entender porque se mostravam tão indignados, se essa é a prática grande maioria deles. Saqueadores históricos, transformaram esse exercício não apenas num apêndice de suas atividades mas, no principal objetivo de suas vidas, para se sustentarem no poder indefinadamente. E se sustentam.. E foi por essa trilha que muitos dos “nossos” se perderam.
No primeiro momento a reação tinha cheiro e cor de hiopocrisia. Depois quase mergulho na tentação de acreditar que, sim, era um complô das elites. A explicação parecia boa. Mas tinha um problema. Era muito nos moldes da lógica do Capitão Renault, no aeroporto de Casablanca, logo depois de Ricky matar o oficial nazista que queria prender um herói da resistência.. Renault, com a seriedade exigida a um gendarme determina, “prendam os suspeitos habituais”.
É muito fácil dizer “é culpa das elites”. Mas, dessa vez, não. Recusei a dose de ração que nós, da esquerda, sempre nos servimos diante de algum fracasso ou erro. Claro que a elite é culpada. Mas, agora, ela entra apenas com sua culpa histórica. E não conseguia, realmente, entender porque tanta perplexidade se os dirigentes petistas apenas cumpriam o triste ritual do nosso país.
Finalmente, quando a crise já está quase no seu centésimo dia (se não me engano, começou na primeira quinzena de maio), penso que começo a ter uma resposta quase satisfatória para minhas angústias. E quero compartilhar com vocês. Por favor, me respondam e discutam comigo porque embora eu comece a encontrar sentido, permaneço angustiada. E, principalmente, abatida. Não por causa de Lula. Sempre o considerei um pequeno-burguês em busca de ascensão. E não sou daqueles que acreditam que pelo fato de ser um operário, “gente do povo”, é mais virtuoso que um garotão surfista da zona sul do Rio.
Minha angústia é por todos aqueles que acreditaram (e devem continuar acreditando), no sonho de uma sociedade “justa e igualitária” (acho que vou me permitir usar o surrado kit). Aqueles que perdemos ao longo do caminho, aqueles que ainda entregam suas mais preciosas qualidade e os belos momentos para transformar a vida de nossa gente. Minha angústia é por aqueles que amaram a revolução. E dedicaram suas vidas ao sonho. Aí estão incluídos alguns dos meus irmãos, que ainda continuam na militância de todas as utopias.
Então percebi que a perplexidade e indignação (mesmo que em alguns casos seja hipócrita) tem a mesma raíz da perplexidade e indignação de alguns quando tomam conhecimento, de que determinado líder indígena fez derrubada ilegal de madeira, comprou um carro zero, um avião, encheu de prostitutas e foi fazer orgia na beira do rio. Muitas vezes me deparei com esse cenário. E me custava muito dizer, “ei, eles são gente!”.
E por que nos sentimos traídos quando um índio age tal qual um não índio? Porque em nossas cabecinhas, eles deveriam se constituir na última “reserva de humanidade”. Ou seja, podemos nos perverter à vontade, cometer todas as barbáries, mentir, enganar, corromper, mas lá no fundo sabemos que há “salvação” para o ser humano porque os índios, são o exemplo de que o ser humano na sua origem, pode “ser puro, intocado pelos apelos da nefasta sociedade. Ele é o ser huumano na sua plenitude de beleza, inocência, blá blá blá blá blá blá”. Eles não teriam direito de nos decepcionar porque se constituem na última “reserva de humanidade” e quando se corrompem de alguma forma, nós nos sentimos mal, imprecamos, reagimos com mais agressividade do que quando um garimpeiro bamburra, compra um carro zero, aluga um avião, enche de prostitutes e vai para os grotões fazer orgia. Porque, no caso dos índios, eles nos mostram que sim, o ser humano, mesmo sem saber manipular os mecanismos de uma sociedade decadente, sabe praticar todas as vilanias e torpezas que nos caracterizam e nos distinguem dos outros animais. No caso dos garimpeiros, madereiros e outros agentes da destruição, bom, esses aí não têm jeito. São excrementos da sociedade. E vamos dormir tranquilos.
É a mesma reação daqueles que torceram o nariz para o filme “A Queda”, que conta os últimos dias de Hitler. Isto porque, dizem, os críticos, “o filme humanizou Hitler”. Ora, convenhamos, Hitler, queiramos ou não, era um ser humano. Da mesma humanidade que produziu um Ariel Sharon, um George W. Bush, um Antonio Carlos Magalhães e também um Vivaldi, um Sartre, um Chico Buarque um Monet e tantos outros que nos fazem sentir sublimes também.
E assim foi com o PT e sua história. Nasceu e cultivou o mito da pureza, da seriedade com a res publica .. E todos nós acreditamos porque era conveniente acreditar. Porque ele seria, no cenário politico de um país sempre colonia, uma “reserva moral”, o ultimo refúgio para os éticos. Se um desses robertojefersons ou waldemaresnetos se corrompia, no fundo de sua consciência ele sabia que a qualquer momento podia buscar abrigo naquela reserva onde floresciam os limpos de coração e bolso.
E, de repente, a reserva foi invadida, fizeram uma grande fogueira de preceitos morais, transformaram os princípios em lenha para aquecer desejos fúteis, um Cohiba aqui, um Land Rover acolá e destruiram os marcos daquele território que se pretendia sagrado.
Mas não foi tão de repente assim. Começaram logo depois da vitória. Imediatamente, para acalmar um tal de Mercado, embarcaram para a sede do Império e anunciaram que seu ministro das finanças seria uma pessoa “de confiança” dos vitoriosos de sempre, que ficassem tranquilos com os investimentos porque Monsanto e Cargill poderiam transformer o outrora verde de nossas matas em laboratório para experiências de organismos geneticamente modificados, que sim, ficassem tranquilos porque o Cassino Brasil continuaria de portas abertas para o capital volátil e, com a subserviência que sempre caracterizou os antigos adversários, mandaram tropas de ocupação para o Haiti, um pobre país que sofrera um golpe de estado construído pelos Estados Unidos, França e Canadá. Com isso, liberaram contingents militares do Império para continuar sua ocupação no Iraque. Até aí, poucos se indignavam ou demonstravam sua perplexidade. Mas as cercas da reserva estavam começando a ruir. E então, começaram a jorrar milhões e milhões de dólares (pobre real, não serve nem para a corrupção).
E quando começaram a jorrar os milhões e milhões a cada depoimento, os eternos saqueadores se assustaram. Onde está nossa reserva moral? E agora, o que fazer? E passaram a gritar, espernear. E não era apenas hipocrisia. Era a certeza de que tudo apodrecera e, chegada a hora da verdade não terão mais um refúgio.
Apesar de tudo isso, apesar dessa tristeza infinita, tenho a mais absoluta convicção de que sim, nós vamos superar mais essa. Nunca tive um partido. Tenho causas pelas quais lutei e lutarei sempre, onde quer que esteja. Mas, tenho amigos e familiars a quem guardo respeito e que são integrantes dessa pobre reserva devastada. Pare eles quero dizer que não, a História não acabou. São os famosos “dois passos para trás” de um processo longo, de uma libertação possível.
Não apenas a História continua, como também ela pode agora ser reconstruída de forma artística. Sim, vamos construir um grande e majestoso mosaico. E o que é um mosaico? Nada mais do que cacos de formas, cores e tamanhos diferentes, colados numa grande base da qual não podem se desprender para não criar buracos. De de tão belos, enfeitam os grandes monumentos da Humanidade. Essa humanidade velha e cansada de guerras, mas sempre surpreendente na sua capacidade de recriar arte do próprio lixo.
Não estou à vontade para puxar nenhuma palavra de ordem, amigos, mas quero lhes dizer que está na hora de voltar á trincheira. E continuar na luta pelos sonhos que sonhamos.
Um beijo grande para vocês. Enorme, para aquecer corações que devem estar estrangulados.
Nenhures, 20 de setembro de 2004
Foi de propósito que deixei para comentar a nova campanha governamental para que o povo brasileiro cultive a auto-estima depois de passada as comemorações pela independência do Brasil. Não queria escrever ainda à sombra das bandeiras e, praticamente colunistas de todos os jornais se debruçaram sobre o assunto.
Não estou com apetite para entrar na discussão dessa tentativa de retomada do ufanismo, lançada há mais de 30 anos pelo general-presidente, Emílio Garrastazu Médici. Ainda estão frescas na nossa memória slogans tais como “Pra frente Brasil”; “Brasil ame-o ou deixei-o” e, em alguns casos, chegou-se ao extremo de colar adesivos no carro com a frase “Brasil acima de tudo”, literalmente traduzida do original, “Deutsch über alles”, ou “Alemanha acima de tudo”, que era a palavra de ordem do governo de Adolph Hitler e os militantes nazistas.
Vamos ficar só nessa nova campanha.
Colunistas importantes, de jornais de circulação nacional avalisaram a campanha lembrando que os franceses saem às ruas em festa para comemorar o 14 de julho, data nacional daquele país e que comemora a queda da Bastilha, célebre prisão onde eram encarcerados os inimigos dos déspotas reis da França. Também lembraram que nos Estados Unidos, quatro de julho, o Independemce Day é festejado com alegria pelo povo norte-americano.
Tudo isso é bem verdade. E, ao longo dos anos,cheguei a cultivar uma certa inveja dos povos que festejam com tanto fervor suas datas nacionais, saem ás ruas, cantam, fazem pic-nic, dançam.
Mas, só para refrescar a memória, é preciso dizer porque tanta alegria de um povo na suas datas nacionais.
No 14 de julho de 1789, a célebre Bastilha foi literalmente destruída em meio a uma revolução encabeçada pela burguesia e pela intelectualidade francesas, além de elementos do povo que extinguiu o absolutismo, guilhotinou os aristocratas e inaugurou uma nova era na França, tornando-a moderna e mais igualitária.
O Independence Day também é fruto de uma revolução. Esgotados por uma série de impostos ditados pela Inglaterra, os norte-americanos, com apoio político e financeiro dos franceses (que ainda não haviam engolido a derrota contra a Inglaterra na Guerra dos Sete Anos, em 1763) iniciaram um movimento separatista em 1775, travaram batalhas sangrentas e, finalmente, em quatro de julho de 1776, os delegados dos 13 territórios que naquela época formavam os Estados Unidos, declaram sua independência que só é recomhecida em 1783, no Tratado de Versailles.
E o que dizer de nossa independência?
Para começar, os livros de História registram timidamente nossas lutas contra o colonizador. A bandeira não é hasteada pela Revolução Praieira, pela revolta de Beckman, pelas tantas guerras que enfrentamos. Tiradentes não é devidamente cultuado e o 21 de abril, data de seu enforcamento, é apenas mais um feriado que também festeja o nascimento de Brasília.
Além disso, o grito de independência foi dado pelo filho do rei que nos dominava, e que não rompeu os laços com a colônia. Ao contrário, deu o grito e abriu um rombo nas nossas finanças porque tivemos que pagar indenização a Portugal depois da independência. Que independência é essa que logo no seu primeiro momento cria uma brutal dívida externa da qual até hoje não nos livramos, a título de indenização? E eu me pergunto indenização de quê? Não bastara o saque? E onde estava o povo nesse dia sete de setembro de 1822? Não ao lado do príncipe regente. Ao lado dele, só as tropas de elite.
Essa são as algumas das diferenças entre o entusiasmo com o qual franceses e norte-americanos comemoram sua data nacional e a nossa indiferença, quase apatia para irmos às ruas festejar o sete de setembro.
E esse é apenas um fator de auto-estima. O culto às lutas, aos heróis. Muitos dos nossos heróis foram sepultados em covas rasas e seus nomes sequer constam do caderno de endereços do cemitério.
Não temos razões para segurar a bandeira da auto-estima quando só em são Paulo, a mais rica cidade do País, 600 mil pessoas vivem em 1.648 cortiços, além da população das ruas que agora enfrentam um verdadeiro genocídio, com 18 mortos entre 17 de agosto a 12 de setembro. Mortos no meio das ruas, de São Paulo, Recife, Belo Horizonte, com sinais evidentes de barbárie.
Não temos razões para cultivar o sentimento de auto-estima quando o País anualmente disputa o primeiro lugar entre as nações de maior injustiça social do planeta. E de maior concentração de terra também, criando um expressivo contingente de famintos que terminam sendo recrutados pelas tropas do narcotráfico.
Não temos razões de auto-estima quando sabemos que nossos cientistas e pesquisadores são obrigados a um êxodo constante porque no Brasil não há qualquer estímulo à pesquisa e os recursos que dveriam ser gastos com educação terminan escorando campanhas publicitárias e políticas para a manutenção do poder.
Auto-estima, ao contrário do que podem pensar marqueteiros da moda e algumas autoridades do Palácio do Planalto, não é regra de comportamento determinada por lei, medida provisória ou campanhas publicitárias veiculadas pelos meios de comunicação.
Auto-estima é traço cultural. É conquista e conquista construída ao longo da formação cultural de cada povo. É um trabalho de gerações e não um modelito novo que se vai usar na primavera que se anuncia….
Saudações
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