A ESTRÉIA E MEU IRMÃO SONSONHO

Há exatos 54 anos, neste 26 de maio, foi publicada minha primeira reportagem na tal “grande imprensa”. A viagem, minha primeira ao Xingu, tinha acontecido dias antes. A revista Veja divulgou a matéria sob o título “índios, Tratores e Bibliotecas”, onde relato a inauguração de uma estrada até hoje inacabada, a BR-080, que deveria ligar Brasília a Manaus. Ela serviu apenas para macular o Parque do Xingu até então inviolável e onde vivem 16 nações indígenas. Mas a estrada foi aberta principalmente para beneficiar 15 fazendas instaladas nas redondezas e entregues aos amigos da ditadura. Ali começou a grande devastação da Amazônia. Exatamente ali, na fronteira de dois biomas, onde a savana abre alas para aquela que foi a maior floresta tropical do planeta, nossa Amazônia.
Há exatos 54 anos, neste 26 de maio, meu irmão Sonsonho, ou Neiva, passou seu aniversário de 22 anos nas mãos dos torturadores da temível Oban. Ele era um dos guerrilheiros que lutou contra a ditadura militar que prendia, sequestrava, torturava, matava e desaparecia com os combatentes na luta pela Democracia. E meu irmão fez oposição armada na “Ala Vermelha do PCdoB” . Meu irmão foi um guerrilheiro e isso me orgulha.
Há 54 anos, nossa família buscava por todos os meios saber onde estava nosso irmão. Só em junho tivemos as primeiras notícias. Nosso único irmão homem estava vivo e fora levado para o Presídio Tiradentes.
Hoje meu irmãozinho querido, aquela criança de mente brilhante que maravilhava toda a vizinhança porque antes de saber ler fazia cálculos complicados e a mente era explorada pelos vizinhos adultos porque eles somava, multiplicava, dividia sem ter papel na mão estaria completando 76 anos e tenho dificuldades de vê-lo nessa idade.
Mano, será que te tornarias um velho rabugento? Mano, será que já terias perdido tua capacidade de sedução? Será que continuarias o grande estrategista político que sempre fostes? Será que continuarias lutando para manter a esquerda leal aos seus ideais?
Ah, mano, não consegui dizer nada há dois dias quando se completaram dez anos da tua morte. Tudo porque tu bem sabes que já cheguei à velhice e tenho poupado os momentos que me sufocam de tristezas e de lembranças que prefiro manter adormecidas. A lembrança de tua morte é uma dessas.
Prefiro pensar como seria o meu irmãozinho velho. E tenho certeza que estarias tecendo alianças que não fossem espúrias para eleger um candidato de esquerda.
Ando por aqui estudando o Populismo, mano. E o assunto tem me preocupado porque não consigo encontrar nenhum líder populista que tenha construído herdeiros. E eles também envelhecem, se enfraquecem e ficamos tentando lhes dar energia, como se fosse possível. Tu ias gostar muito desses livros que ando estudando.
Tu sempre davas um jeito de pegar meus livros e para não interromper minha leitura tu devoravas em menos de 48 horas. Sempre me impressionou tua capacidade de ler. Lias com uma rapidez supersônica e quando discutiamos, eu percebia que tu tinhas entendido mais do que eu que estudava cada um deles, sublinhando, anotando.
Mano, já passa da meia noite aqui nessa terra estranha. Comecei a te escrever sentada no jardim que plantei pra ti. Sim, no dia seguinte da tua morte sai desvairada, comprei árvores ainda pequenas e que hoje já nos concedem sombras, flores variadas, arbustos. Foi a única maneira de me sentir perto de ti. Com enxada, abri enormes buracos. Plantei palmeiras, bambus e cultivei as sementes de carvalho. Esse carvalho está bem alto e é onde me refugio quando leio.
Mano, eu te telefonaria hoje. Aqueles telefonemas-relâmpago, só pra te dizer feliz aniversário e perguntar sobre um ou outro assunto político. Agora só me resta te escrever.
Um beijo, meu irmãozinho.
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