DE VOLTA À TRINCHEIRA

By , 16/02/2005 3:43 pm

(Reflexões sobre a devastação da reserva de moralidade)

Mais do que uma reflexão sobre a crise política, escrevo para exorcizar meus fantasmas e reduzir o índice de angústia que tem me sufocado há três meses, quando os casos de corrupção envolvendo o Governo começaram a ser denunciados.
Para quem recebeu aquela minha carta aberta ao Lula, em agosto do ano passado, sabe que as denúncias não me surpreenderam. Eu só não sabia quando elas chegariam ao público, mas sabia que a temperatura das ganâncias estava em ponto de ebulição.
Apesar de ser um dos meus favoritos, rejeito o determinismo de Machado de Assis quando um de seus personagens (esqueci em qual dos romances) diz que “a ocasião não faz o ladrão, faz o roubo; o ladrão já nasce feito”. Mas, acho que vocês se lembram de eu ter falado de Delúbio, não? De Marcelo Sereno? Pois bem, Delúbio, para mim , personifica aquilo que os criminalistas chamam de “corpo de delito”. E não é de agora, nem começou com a chegada de Lula ao Palácio do Planalto. Vem de longe. Com ele se justifica o determinismo machadiano.
Mas agora peço que tenham paciência e me ajudem nessa reflexão. Quando estourou a crise, passei a ler a reação daqueles que há alguns séculos saqueiam (e sacam) nossos bens, o produto de nosso trabalho e, em algumas circunstâncias, até mesmo nossos sentimentos. Varei madrugadas atenta a todos os jornais brasileiros que permitem leitura via internet. Até mesmo jornais pequenos, da Amazônia, do Nordeste. Todos os neurônios estavam em alerta máxima na tentativa de entender porque se mostravam tão indignados, se essa é a prática grande maioria deles. Saqueadores históricos, transformaram esse exercício não apenas num apêndice de suas atividades mas, no principal objetivo de suas vidas, para se sustentarem no poder indefinadamente. E se sustentam.. E foi por essa trilha que muitos dos “nossos” se perderam.
No primeiro momento a reação tinha cheiro e cor de hiopocrisia. Depois quase mergulho na tentação de acreditar que, sim, era um complô das elites. A explicação parecia boa. Mas tinha um problema. Era muito nos moldes da lógica do Capitão Renault, no aeroporto de Casablanca, logo depois de Ricky matar o oficial nazista que queria prender um herói da resistência.. Renault, com a seriedade exigida a um gendarme determina, “prendam os suspeitos habituais”.
É muito fácil dizer “é culpa das elites”. Mas, dessa vez, não. Recusei a dose de ração que nós, da esquerda, sempre nos servimos diante de algum fracasso ou erro. Claro que a elite é culpada. Mas, agora, ela entra apenas com sua culpa histórica. E não conseguia, realmente, entender porque tanta perplexidade se os dirigentes petistas apenas cumpriam o triste ritual do nosso país.
Finalmente, quando a crise já está quase no seu centésimo dia (se não me engano, começou na primeira quinzena de maio), penso que começo a ter uma resposta quase satisfatória para minhas angústias. E quero compartilhar com vocês. Por favor, me respondam e discutam comigo porque embora eu comece a encontrar sentido, permaneço angustiada. E, principalmente, abatida. Não por causa de Lula. Sempre o considerei um pequeno-burguês em busca de ascensão. E não sou daqueles que acreditam que pelo fato de ser um operário, “gente do povo”, é mais virtuoso que um garotão surfista da zona sul do Rio.
Minha angústia é por todos aqueles que acreditaram (e devem continuar acreditando), no sonho de uma sociedade “justa e igualitária” (acho que vou me permitir usar o surrado kit). Aqueles que perdemos ao longo do caminho, aqueles que ainda entregam suas mais preciosas qualidade e os belos momentos para transformar a vida de nossa gente. Minha angústia é por aqueles que amaram a revolução. E dedicaram suas vidas ao sonho. Aí estão incluídos alguns dos meus irmãos, que ainda continuam na militância de todas as utopias.
Então percebi que a perplexidade e indignação (mesmo que em alguns casos seja hipócrita) tem a mesma raíz da perplexidade e indignação de alguns quando tomam conhecimento, de que determinado líder indígena fez derrubada ilegal de madeira, comprou um carro zero, um avião, encheu de prostitutas e foi fazer orgia na beira do rio. Muitas vezes me deparei com esse cenário. E me custava muito dizer, “ei, eles são gente!”.
E por que nos sentimos traídos quando um índio age tal qual um não índio? Porque em nossas cabecinhas, eles deveriam se constituir na última “reserva de humanidade”. Ou seja, podemos nos perverter à vontade, cometer todas as barbáries, mentir, enganar, corromper, mas lá no fundo sabemos que há “salvação” para o ser humano porque os índios, são o exemplo de que o ser humano na sua origem, pode “ser puro, intocado pelos apelos da nefasta sociedade. Ele é o ser huumano na sua plenitude de beleza, inocência, blá blá blá blá blá blá”. Eles não teriam direito de nos decepcionar porque se constituem na última “reserva de humanidade” e quando se corrompem de alguma forma, nós nos sentimos mal, imprecamos, reagimos com mais agressividade do que quando um garimpeiro bamburra, compra um carro zero, aluga um avião, enche de prostitutes e vai para os grotões fazer orgia. Porque, no caso dos índios, eles nos mostram que sim, o ser humano, mesmo sem saber manipular os mecanismos de uma sociedade decadente, sabe praticar todas as vilanias e torpezas que nos caracterizam e nos distinguem dos outros animais. No caso dos garimpeiros, madereiros e outros agentes da destruição, bom, esses aí não têm jeito. São excrementos da sociedade. E vamos dormir tranquilos.
É a mesma reação daqueles que torceram o nariz para o filme “A Queda”, que conta os últimos dias de Hitler. Isto porque, dizem, os críticos, “o filme humanizou Hitler”. Ora, convenhamos, Hitler, queiramos ou não, era um ser humano. Da mesma humanidade que produziu um Ariel Sharon, um George W. Bush, um Antonio Carlos Magalhães e também um Vivaldi, um Sartre, um Chico Buarque um Monet e tantos outros que nos fazem sentir sublimes também.
E assim foi com o PT e sua história. Nasceu e cultivou o mito da pureza, da seriedade com a res publica .. E todos nós acreditamos porque era conveniente acreditar. Porque ele seria, no cenário politico de um país sempre colonia, uma “reserva moral”, o ultimo refúgio para os éticos. Se um desses robertojefersons ou waldemaresnetos se corrompia, no fundo de sua consciência ele sabia que a qualquer momento podia buscar abrigo naquela reserva onde floresciam os limpos de coração e bolso.
E, de repente, a reserva foi invadida, fizeram uma grande fogueira de preceitos morais, transformaram os princípios em lenha para aquecer desejos fúteis, um Cohiba aqui, um Land Rover acolá e destruiram os marcos daquele território que se pretendia sagrado.
Mas não foi tão de repente assim. Começaram logo depois da vitória. Imediatamente, para acalmar um tal de Mercado, embarcaram para a sede do Império e anunciaram que seu ministro das finanças seria uma pessoa “de confiança” dos vitoriosos de sempre, que ficassem tranquilos com os investimentos porque Monsanto e Cargill poderiam transformer o outrora verde de nossas matas em laboratório para experiências de organismos geneticamente modificados, que sim, ficassem tranquilos porque o Cassino Brasil continuaria de portas abertas para o capital volátil e, com a subserviência que sempre caracterizou os antigos adversários, mandaram tropas de ocupação para o Haiti, um pobre país que sofrera um golpe de estado construído pelos Estados Unidos, França e Canadá. Com isso, liberaram contingents militares do Império para continuar sua ocupação no Iraque. Até aí, poucos se indignavam ou demonstravam sua perplexidade. Mas as cercas da reserva estavam começando a ruir. E então, começaram a jorrar milhões e milhões de dólares (pobre real, não serve nem para a corrupção).
E quando começaram a jorrar os milhões e milhões a cada depoimento, os eternos saqueadores se assustaram. Onde está nossa reserva moral? E agora, o que fazer? E passaram a gritar, espernear. E não era apenas hipocrisia. Era a certeza de que tudo apodrecera e, chegada a hora da verdade não terão mais um refúgio.
Apesar de tudo isso, apesar dessa tristeza infinita, tenho a mais absoluta convicção de que sim, nós vamos superar mais essa. Nunca tive um partido. Tenho causas pelas quais lutei e lutarei sempre, onde quer que esteja. Mas, tenho amigos e familiars a quem guardo respeito e que são integrantes dessa pobre reserva devastada. Pare eles quero dizer que não, a História não acabou. São os famosos “dois passos para trás” de um processo longo, de uma libertação possível.
Não apenas a História continua, como também ela pode agora ser reconstruída de forma artística. Sim, vamos construir um grande e majestoso mosaico. E o que é um mosaico? Nada mais do que cacos de formas, cores e tamanhos diferentes, colados numa grande base da qual não podem se desprender para não criar buracos. De de tão belos, enfeitam os grandes monumentos da Humanidade. Essa humanidade velha e cansada de guerras, mas sempre surpreendente na sua capacidade de recriar arte do próprio lixo.
Não estou à vontade para puxar nenhuma palavra de ordem, amigos, mas quero lhes dizer que está na hora de voltar á trincheira. E continuar na luta pelos sonhos que sonhamos.
Um beijo grande para vocês. Enorme, para aquecer corações que devem estar estrangulados.

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