PAIXÃO SEGUNDO URARIANO
Pátio de São Pedro, Recife, que concentra uma das mais majestosas represaentações da Arquitetura Colonial brasileira e onde os revolucionários, acreditavam estar a salvo do inimigo.
Pátio de São Pedro, Recife, que concentra uma das mais majestosas represaentações da Arquitetura Colonial brasileira e onde os revolucionários, acreditavam estar a salvo do inimigo.
Nestas caixa estampadas com mapa-mundi, guardo histórias de minha vida
Confesso que fui inspirada a escrever a partir do baú de fotos de minha amiga Eliana Lucena, companheira de tantas viagens e, com certeza, minha única confidente. Por muito mais de dez anos, palmilhamos, ou melhor, voamos, em monomotores, bimotores, DC-3, e até aviões que insistiam em voar sem motor algum porque eles silenciavam em pleno ar, sobre aquele mar de árvores que de tão verdes pareciam um negro profundo pela Amazônia infinita. Quer dizer, na época em que ela parecia infinita porque estava apenas sendo ameaçada de destruição. E nós já denunciávamos essa destruição no início da década de 70.
Eliana guarda mais fotos dessa época. Eu guardo as histórias numa já legendária coleção de agendas onde anoto o dia a dia desse nosso país. As agendas estão catalogadas, guardadas em lindas caixas no alto da minha biblioteca. Suas páginas trazem histórias e entrevistas que remontam aos tempos em que o conceito da palavra #honra ainda era conhecido e praticado. Tempos em que as denúncias de corrupção de uma ditadura que nos fraturou para sempre eram abafadas sob tacos de botas ou ameaças explícitas contra os jornalistas. Não éramos heroicas. Não buscávamos fama ou prêmios nacionais ou internacionais. Sequer nos passava pela cabeça escrever livros imediatistas. Não. Nós apenas ousávamos praticar nossa profissão com um mínimo de decência. E era um exercício com risco de vida. Mas era necessário.
Algum de vocês já foi obrigado a empurrar um avião para ele “pegar”, ou seja, para que as hélices se movessem e sair correndo para sentar e decolar? Sim, já nos aconteceu. E mais de uma vez. Nem me lembro quantas.
Piloto perdido então, era o que não faltava. Piloto desmaiar em pleno voo foi a mais surrealista das nossas aventuras. Até porque, nessa viagem do piloto perdido, tudo começou errado, desde a saída e Brasília até Conceição do Araguaia (cidade grande daquelas bandas do sul do Pará).
O ano era 1980. Os Kayapó de norte a sul do Xingu decretaram uma guerra contra a proliferação das fazendas, contra as estradas iniciada nos anos 70 e com uma realidade agravada com a explosão dos garimpos e madereiras. Foi uma guerra de “efeito dominó”. Começou entre os Kayapó do Kretire, dentro do Parque Indígena do Xingu e se estendeu até o sul do Pará, com os Kayapó do Gorotire, no hoje município de Rio Maria.
Na viagem de ida, o piloto apenas se perdeu. Tenho um pânico irracional de aviões. Nos últimos três anos, minha médica tem receitado seis comprimidos quando vou ao Brasil. Viagem de ida e volta a Brasília, ida e volta ao Rio e ida e volta a Santarém. Se eu fizer mais de seis percursos de avião, vou de ônibus. Os comprimidos me deixam totalmente lesa. Não reajo nem sob uma tempestade.
Perdido e sem co-piloto. Era eu quem ocupava a poltrona do co-piloto. Ele voava e voava. Voava em círculos. Só percebi que estávamos voando em círculos quando pela terceira ou quarta vez ele sobrevoou a mesma fazenda.
Nossa viagem era para cobrir um acontecimento trágico. Os Kayapó do Gorotire tinham promovido uma chacina na “Fazenda Espadilha”, município de Rio Maria. Eram 17 mortos, entre estes, duas crianças e a babá, Aparecida. Uma das crianças tinha o nome da minha filha caçula, Helena.
Cansado de voar no mesmo espaço, o piloto, um jovem ainda imberbe e uma tanto amarelado, resolveu pedir ajuda aos outros pilotos que circulavam pelo mesmo espaço aéreo. Na qualidade de co-piloto, anotei as indicações na contracapa de minha agenda. E lá está escrito, “segue rumo norte, 50 graus de latitude. Passa um morro e depois duas fazenda. A terceira é Espadilha.
Mas não teríamos acesso á Fazenda Espadilha. O acesso só seria dado pelo famoso e mal-afamado Major Curió, o “homem do helicóptero vermelho”, senhor das terras do Araguaia desde a época da guerrilha. Encontramos o sorridente Curió no Hotel Tucumã, em Conceição do Araguaia. O horário já não permitia voo de aviões de pequeno porte. No dia seguinte, autorizados, chegamos ao local do massacre. Tento apagar a imagem da carnificina e ela insiste em permanecer viva na minha memória. Eles estavam mortos há mais de três dias. Desde a entrada principal da fazenda até os quartos, havia corpos. E muito sangue. Sangue para todos os lados. Muito, muito, muito sangue. Sangue humano. Sangue de vítimas da invasão da Amazônia. E as vítimas sempre foram os deserdados, índios, sem-terra, garimpeiros esfomeados.
Não havia tempo para passar matéria completa. Passei por telefone do hotel apenas dez linhas. E foi a única vez que tive matéria de dez linhas na primeira página da Folha de São Paulo, assinada. Que vergonha, assinar na primeira página e apenas dez linhas. Estávamos todas, Sandra Carvalho junto, em choque, apesar de já termos experiências com massacres e corpos espalhados sem vida.
Na volta, foi pior. Mal o avião decolou, nem dez minutos de voo e o piloto, a troco de nada, desmaiou. Desmaiou de fome. Sim, porque as empresas de táxi-aéreo pagam um salário tão baixo que os pilotos economizam as diárias recebidas e não almoçam ou não jantam. Ou então, não almoçam, nem jantam. Alguém providenciou sal e o piloto se recuperou. Eliana, Sandra e eu, devidamente alimentadas, apenas lixávamos nossas unhas, verdes de medo. Eu já quase sem sobrancelhas porque levo sempre uma pinça e vou tirando a sobrancelha cada vez mais rápido, à medida que o pânico aumenta.
Sã e salva, voltamos para contar os horrores da guerra de destruição da Amazônia.
Numa outra viagem, quando Eliana Lucena mostrou o quanto é leal às amizades, só chegamos por reconhecer os sinais de fumaça. Literalmente.
O presidente da Funai, general Ismarth de Araújo, pessoa de quem eu gostava muito, resolveu me punir me mandando num pequeno avião, o Minuano. Era dezembro, quando chuvas torrenciais desabavam do Cerrado à pré-Amazônia. Nosso destino era o Parque do Xingu, posto Diauarum, onde vivem os Kajabi, Suyá, Juruna.
A situação em Diauarum estava delicada. Os irmãos Villas-Boas haviam se aposentado e o sertanista Apoena Meirelles fora nomeado para dirigir o parque. Seu nome não era unanimidade. Os índios rejeitavam. Escrevi sobre isso e o general me puniu. Os jornalistas seguiriam todos no avião Bandeirante da Funai. E eu, no “Minuano”, um bimotor até ajeitadinho. Eliana, numa solidariedade inesquecível, prontamente disse que iria comigo. Fiquei comovida.
O Minuano estava com uma carga tão grande que nós duas íamos imprensadas entre caixas. Tudo bem na saída. Voamos tranquilamente até a ilha do Bananal, para abastecer. Daí em diante foi pauleira. Chuva sem trégua, tempestade e o Minuano parecia uma folha seca voando ao sabor do vento. Eu já estava morta. Confesso. Totalmente morta. Ressuscitei quanto o piloto, já um tanto nervoso, nos disse, “estou perdido”. Ai, meu Deus. Piloto perdido. Onde andará meu brevet?
Bom, orientamos o piloto. Já estávamos em terras xinguanas. Eu, como sempre, na poltrona do co-piloto. Ressuscitada disse, “segue por cima do rio maior. E o piloto, “mas como distinguir o rio maior se está tudo igual”. Confesso que quase morri de novo. Era 22 de dezembro de 1978. Natal seria daí a três dias e eu só pensava em estar em casa para o Natal com minhas duas paixões, Cristina e Helena.
Foi Eliana, que também ressuscitou discretamente quem disse, “lá está, o maior. É visível”. E então vimos o Xingu em sua majestade se destacando naquele mundo de água. Mas nem o piloto, nem nós sabíamos se estávamos mais ao sul ou mais ao norte do parque. E então falei, vai por cima do rio, em voo baixo até ver fumaça. Onde tiver fumaça, deve ter uma pista de pouso. Ueba! Viva! Chegamos a Diauarum e as negociações de paz já estavam a pleno vapor. Mas chegamos inteiras, com nossas agendas de anotações e nossas insuperáveis Bic´s. Azuis.
Tive o direito de voltar no “Bandeirante” da Funai, olhando Cláudio Villas-Boas com um ar triste porque foi naquele dia que ele e seu irmão Orlando, esses dois valorosos Villas-Boas cortaram seu cordão umbilical do Xingu que tanto amavam.
Essas são apenas duas das dezenas de outras histórias com pilotos, monomotores e essa nossa Amazônia tão amada e vilipendiada pela codícia.
Há uma que não conto nem amarrada. deixo para Eliana. Só ela conhece o segredo do vaso Karajá, dentro de um avião perdido na chuva.
Memélia Moreira
NOITE EM CUERNAVACA
Memélia Moreira
Era sábado e fazia muito frio na cidade do México naquele fevereiro de 1978. Meu tio, Neiva Moreira, que ainda amargava o exílio, acordou cedo e anunciou que íamos sair antes das nove da manhã para viajar. No caminho, compramos um bolo confeitado para comemorar o aniversário de uma das figuras que mais admiro na História do Brasil, Francisco Julião, que desde sempre fez parte do meu imaginário com suas lutas pela Reforma Agrária. O bolo parecia um arco-íris tantas e tão fortes eram as cores. No México, todas as cores e sentimentos são fortes. Até mesmo o dia dos mortos é comemorado com cores. O bolo seguia a tradição.
Subimos e descemos montanhas num “carro de praça”, antiga denominação para táxi, ainda usado por Neiva. Era confortável, mas mesmo assim não consegui continuar o sono interrompido. Seria quase um sacrilégio dormir e perder todos os momentos e paisagens daquele que é um dos países mais fascinantes que conheci. E só no caminho fui informada de que seguíamos para Cuernavaca, a capital do Estado de Morelos. Pronto, foi o suficiente para me deixar em crescente excitação. Morelos! Terra de Emiliano Zapata, outro personagem que reverencio. O homem que comandou a revolução mexicana. E mais montanhas e vales. E a terra seca, cinza, deserta. De vez em quando ultrapassávamos ônibus que gemiam nas subidas ou assoviavam nas descidas. E a terra continuava seca e cinza.
Ainda não era meio-dia quando chegamos à cidade. O táxi nos deixou em frente a uma casa singela, toda branca. Branca mesmo. Por dentro e por fora. E, na minha frente, tranquilo e amável, Julião, nome que era o terror de latifundiários e grileiros que ainda hoje infestam o Brasil. Pouco depois chegou mais um convidado, com sua esposa. Vestido de “guayabera”, branca, calças largas e voz tonitruante, ali estava para meu deslumbramento, o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez. De verdade. Trouxe petiscos para o almoço porque ali, ele era apenas “Gabo”, e naquele dia, pouco lhe interessava a fama porque naquele sábado, o importante era o aniversário de Julião. E ali estavam entre amigos, todos exilados das tantas ditaduras de nossa América.
Chegou a hora do almoço, mas não me lembro qual foi o prato principal. Só estava interessada na rica conversa entre aqueles três homens e na sobremesa. Era o famoso bolo enfeitado com flores açucaradas, vermelhas, verdes, amarelas, alaranjadas e até azuis. E recheado com chocolate e ameixas. Cantamos parabéns e tomamos suco de uva com o bolo.
Não saímos de casa. Nada de conhecer o “Palácio de Cortéz” ou o “Capitel do Calvário”. Não. Definitivamente, não. Para que conhecer monumentos construídos pelos invasores espanhóis e perder tanto conhecimento transmitido nas conversas? Não, o melhor era ficar ao redor da mesa aprendendo. Além disso, pensava eu, teria uma bela história a escrever para meu jornal. Na época, trabalhava no “Jornal de Brasília”.
Nem vi a tarde escorrer e, quando a noite começou a chegar foi que Julião nos contou que sua casa – construída com suas mãos – não tinha luz elétrica. Durante o dia, a iluminação era natural. E ao escurecer, velas e lampiões. Assim, dizia o homem que tanto sonhou e lutou pela Reforma Agrária, “economizo energia”. Francisco Julião era homem pobre.
E continuavam conversando, sem parar. Eu, calada, sorvendo cada vírgula, cada travessão, cada parágrafo. Neiva entusiasmado com a queda de Reza Pahalevi no Iran, destronado pelo aiatolá Khomeini. Gabo provocava Julião, que buscava seus cadernos com poesias escritas à mão. E confessava que ao se separar de uma mulher, sempre lhe deixava uma poesia. E Gabo queria saber se já havia poesia para a companheira do momento. Os dois riam, Nas pausas, Julião nos fazia ouvir fitas que ele mesmo gravou com os remanescentes da revolução mexicana. E os dois combinavam escrever um grande romance sobre a revolução. O personagem principal seria Gregório, um dos sobreviventes que morreu com mais de 90 anos e fora entrevistado por Julião,que tinha milhares de horas gravadas com os revolucionários. Não sei o que foi feito das fitas. Parece que foram entregues à Universidade Federal de Pernambuco. Mas delas não tenho mais notícias.
A conversa varou a noite. Nem vi meu tio deixando a sala para dormir. Mal levantava para beber água, totalmente magnetizada pela conversa, que em nenhum momento caíu nas amarguras de exilados. Riam, contavam piadas sobre os ditadores, comentavam o impacto da visita do Papa João Paulo II à cidade do México mas, falavam principalmente de poesia e política.
Quando o domingo começou a raiar, os dois, sem interromper a conversa, prepararam o café e foram acordar suas mulheres. Foi aí que Julião nos deu uma ordem. Não podíamos perder a missa. “É a maior atração dessa cidade”, dizia com um ar grave. Então conheci a Catedral, que começou a ser construída em 1526. Imponente como todas as catedrais embora sua principal riqueza fosse mesmo a conhecida “Missa Panamericana”, celebrada pelo cardeal espanhol Sérgio Mendez Arceo. Mais que missa, um libelo em defesa dos direitos sociais dos povos dominados pelo Império, vizinho ao México.
Depois da missa, como se tivesse vivido um sonho, voltamos para a Cidade do México. Peguei então minha agenda de anotações, que não ousara abrir durante a conversa e escrevi as histórias daquela noite encantada. Feliz porque tinha uma boa matéria para meu jornal.
Doce ilusão!
Ao chegar, entusiasmada, fui direto ao chefe dizendo que tinha diálogos inteiros entre Neiva Moreira, Francisco Julião e Gabriel Garcia Márquez. O chefe, jovem jornalista de boa família e boa formação acadêmica, olhou com total desdém e respondeu: “Essa matéria não interessa ao jornal”. Quase chorei de raiva, mas meu desprezo foi tanto, que preferi dar de ombros. Não o sabia medíocre mas, agora, 31 anos depois, foi que tive certeza de sua pequenez, quando vi que seu nome era um dos citados para diretor-geral do Senado, que vive sua mais profunda degradação. E então entendi porque minha rica história não o interessou. O chefe estava apenas fazendo sua carreira. Obviamente, a noite encantada de Cuernavaca não acrescentaria ítens no seu currículo.
Que pena!
Mamãe com quatro dos cinco filhos. Verinha ainda não havia nascido e eu estava com a boca cheia de pirulito.
Pouco tempo depois daquele sombrio 71. Nós cinco por ordem de chegada ao mundo: Eu, Sonsonho, Gagocha, Goretti e Verinha
O CAMINHÃO DA NOITE E NATAL, UM CONTO DA DITADURA
Memélia Moreira
As esperanças pareciam agonizar no ano de 1971, o mais sombria de minha vida. Eu acabara de chegar de Paris e, logo no começo de janeiro, meu pai morreu. Estava com 50 anos. No hospital assinaram o documento dizendo que a morte fora provocada por um brutal e irreversível AVC. Mas se a Medicina soubesse ouvir as profundezas dos corações, no espaço pontilhado para descrever a causa mortis, os médicos assinariam, sem erro, “morreu de tristeza”. Sim, meu pai morreu de tristeza. Não conseguia dormir e acordar cercado pela ditadura e pelo medo, sabendo que os telefones estavam sob escuta permanente. Não se adaptava ao Uruguai sem redes penduradas nas paredes e o frio dos invernos rigorosos. Vagava como se fosse um apátrida. Mas com a consciência de que aqueles militares que usurparam o poder, silenciaram, prenderam, torturaram e mataram, lograram também na tarefa de desestruturar as famílias. Sua família.
As flores da sepultura de papai ainda não haviam murchado quando um telefonema de São Paulo nos informou que meu irmão, Sonsonho, havia “caído”, código eufemístico para dizer que alguém fora preso. Paradeiro desconhecido. Sequer se podia dizer se vivo ou morto. A primeira providência era buscar um deputado que anunciasse em plenário a prisão do mano. Não havia garantias, mas se estivesse vivo, um discurso no plenário de certa forma inibia a soulção final aplicada em muitos casos. Porque ditaduras quando atingem o extremo de sua incapacidade em derrotar as idéias, eliminam seus opositores. O primeiro deputado a ser procurado, e que outrora fora amigo da família, recusou-se. Coube ao deputado Pedroso Horta, ex-udenista e filiado ao então MDB de São Paulo, e sempre disposto a ajudar os prisioneiros políticos, fazer a comunicação no horário do “pequeno expediente” da Câmara.
Enquanto a família se mobilizava para encontrar meu irmão, Sonsonho, foi a vez de Goretti, a irmã que ocupou o posto de caçula por alguns anos e a primeira criança pela qual me apaixonei. Ela sofreu um acidente. Cirurgia, coma, passou 72 horas de sua vida lutando contra a morte. Venceu. Com menos 90 centímetros de intestino, vértebras espatifadas e um colete de gesso que usou por muito tempo para ajudar na recuperação da coluna vertebral. Até hoje sofre sequelas.
Os acontecimentos se acumulavam em velocidade impossível de ser assimilada. E era a vez de Gagocha, minha segunda irmã, aquela a quem desde criança me sinto na obrigação de proteger. Diante da possibilidade real de ser presa porque toda a organização na qual militava, a aguerridas Ala Vermelha do PcdoB , estava se desmantelando, ela deveria submergir. Outra palavra da nossa linguagem de resistência para dizer, desaparecer por um certo perído. Aqueles generosos meninos e meninas que fizeram a oposição armadas nas lutas de guerrilha tombavam dia a dia. E mamãe não queria correr o risco de ter mais um filho preso. Mandou Gagocha para São Luís, nosso refúgio.
Sem fraturas externas e de paradeiro conhecido, só minha mãe, uma ilha de fibras tecidas na coragem e cercada de coração por todos os lados, minha irmã Verinha, pessoa que me fez conhecer o sentimento de mãe desde que nasceu, e que ainda nem tinha dez anos mas já sabia o significado das palavras “guerrilha’, “ditadura”, “terrorismo” , “escuta telefônica”, silêncio”, “medo”. E eu, que tentava me manter inteira entre as aulas da Universidade de Brasília e a redação da revista “Veja”. No fim do dia, quando voltava para jantar, o eco do silêncio perturbava minhas lembranças de uma casa cheia da buliçosa infância.
Goretti saíu do coma no mesmo dia em que tivemos a resposta da pergunta que nos angustiava. Meu irmão estava vivo. Nas dependência da OBAN, uma casa de horrores. Era 71. Era Médici, o mais sanguinário dos ditadores, um facínora de olhos miúdos e cruéis. E era meu irmão vivo. Sonsonho é o único homem entre nós, as quatro filhas mulheres. Passara pelas manoplas impiedosas do Delegado Fleury, o mais temido dos assassinos da ditadura, e estava vivo. Torturado com todos os requintes das máquinas de morte dos ditadores, ele continuava vivo. Num mesmo dia, mamãe, culta e bela, que enfrentou os militares bravamente, de cabeça erguida, respostas precisas, recuperou dois dos seus filhos.
Faltava pouco para o ano acabar. E, finalmente, Natal.
Detesto lagosta na mesma intensidade com a qual me debruço vorazmente sobre um prato de camarões ou lagostins. Mas escolhi lagosta para a ceia de Natal. Queria ver minha mãe feliz pelo menos naquela noite. Ela nunca exibia sua tristeza, mas seus olhos viviam ausentes, enevoados. Tomamos vinho branco, eles comeram a lagosta e foi tirada uma foto. Não gosto de rever essa imagem de um momento sombrio. Ela expressa uma tal desolação que revivo todos os instantes daquele ano infindável.
Terminada a ceia, a celebração, foram, aos poucos, para seus quartos. Quando todos dormiam, peguei uma sobra de garrafa de vinho, caminhei até o Eixo Rodoviário e me sentei no meio fio. Chorei lágrimas de um ano inteiro. Bebi as lágrimas que se misturaram ao vinho. E continuei a chorar.
Ainda sentada naquele silêncio do Cerrado que tanto me faz falta, quase duas horas da manhã, sózinha, vi duas luzes potentes bem longe, e se aproximando. Mais perto e mais perto. Era um caminhão da Fábrica Nacional de Motores, que já foi um orgulho da indústria nacional, faróis enormes apontando o caminho. Quando olhei as três letras inscritas na cabine, enxuguei as lágrimas, consegui soltar um suspiro longo e sorri para o caminhão. As três letras, FNM, me diziam “Feliz Natal, Memélia”. Foi uma das mais belas mensagens que recebi ao longo da vida. Tive então a certeza de que nenhuma dominação ditatorial nos deteria e que continuaríamos nas nossas lutas. Cada um na sua trincheira.
Richard Loving and Mildred Jetter
NAMORADAS COLORIDAS OU, ESCOLHAS AMOROSAS DE JOAQUIM
Memélia Moreira
Há alguns anos, uma das mais importantes empresas da indústria de cosméticos do Brasil fez uma pesquisa sobre a cor dos brasileiros. Eles queriam acrescentar novos tons à linha de maquiagem. Mais especificamente, ao pó-de-arroz. O resultado, sem tanto destaque na Imprensa, na Antropologia ou na Sociologia, me deixou cheia de orgulho da “nossa pátria mãe gentil”. Há, na população brasileira, 125 diferentes tonalidades de pele. E esse é um dos meus trunfos quando, aqui longe do Brasil e também do centro do meu mundo, um gringo qualquer me pergunta porque nós, brasileiros, somos tão bonitos. A resposta vem igual “brado retumbante”.
Respondo com o peito estufado, “porque miscigenamos. Porque é o país que tem a cara de todo mundo. Porque qualquer pessoa, de Gisele Bündchen a Pelé, de qualquer lugar do mundo, de qualquer etnia, pode dizer “sou brasileiro”. E a resposta cala principalmente aqueles que nasceram e se criaram num país onde há bem pouco tempo se proibia casamento entre negros e brancos. Ou brancos e índios. Que o digam Richard Loving (branco) e Mildred Jeter (negra). Eles percorreram todas as instâncias judiciais para exigirem o direito de ter o casamento reconhecido. O caso foi parar na suprema corte dos Estados Unidos. E venceram a discriminação. A persistência do casal desembocou na revogação da lei que proibia “casamentos interraciais”.
No país onde vivo, bem longe do centro do meu mundo, vigorou, até 1967, uma lei que proibia qualquer casamento interétnico. Mas os EUA não foi o único. A Alemanha, que para muitos deve integrar o “centro do mundo”, se igualou aos EUA. Sob o governo Nacional-Socialista, em 15 de setembro de 1935, foi aprovada a lei “Gesetz zum Schutze des deutschen Blutes und der deutschen Ehre” que pretendia proteger o sangue e a honra dos alemães. Há outros exemplos tão abomináveis quanto os citados, mas esse texto não quer ser um tratado. Escrevo apenas para externar minha indignação e perplexidade.
2013 agonizava quando eu, cercada pela família e minhas mais recentes paixões (os netos Luísa e Diego), sem tempo para ler jornal ou frequentar as redes sociais, num fim de noite, passei rapidamente pelo Twitter. Estava lá o tal texto que me deixou perplexa.
Estava lá, em letras de forma (ainda se diz isso?) uma das mais patéticas e rasteiras das demonstrações de racismo que tenho visto. O autor, um jornalista, na sua ânsia de criticar o ministro Joaquim Barbosa, açoita o negro e presidente do Supremo Tribunal Federal por suas escolhas amorosas. Diz ele que o ministro Joaquim está namorando uma pessoa que – vejam o tamanho da ousadia, do pecado, do crime – não é negra. E compara o ministro ao jogador Pelé, esse que tantas alegrias levou ao povo brasileiro. Pelé –vejam o tamanho da ousadia, do pecado, do crime – também se casou com uma mulher não negra.
O jornalista então faz elogios ao lutador Cassius Clay, o Muhamed Ali, considerado o maior boxeador de todos os tempos e que, negro, se casou com uma negra. Admiro Muhamed Ali. Não apenas porque por ter se casado com mulheres negras, mas sim porque recusou ser recrutado para o Exército do seu país que, naqule tempo, 1968, tentava massacrar a soberania do povo Viet. Clay, amargou um tempo na cadeia, mas não abriu mão de sua consciência.
Li e reli o texto que tanta indignação e perplexidade me provocou. Tenho pouco conhecimento do autor.Então reli para entender o que não estava escrito. Foi fácil.
O ministro Joaquim Barbosa vem sendo alvo de diferentes manifestações de racismo desde o momento em quê, exercendo seu papel de relator da ação Penal 470, conhecida também pelo codinome de “Mensalão”, foi favorável à condenação de políticos de diferentes partidos, entre estes, o PT. Os adjetivos pejorativos já se esgotaram. Já foi chamado inclusive de “Macaco” até mesmo por pessoas que se consideram defensoras dos direitos humanos. Jogam no ministro todas as mágoas pela condenação de uma das figuras mais simbólicas do PT, o ex-presidente do partido, José Dirceu. Nunca ouvi ou li qualquer crítica contra a ministra Rosa Weber que ao votar acompanhou o relator da ação penal. Ela é branca e tem sobrenome de gente que vem do “centro do mundo”. Também não ouvi ou li críticas aos demais ministros que votaram pela condenação. Não. É como se o ministro Joaquim Barbosa tivesse tomado uma decisão monocrática. Seus críticos praticam o exercício da memória seletiva. Esquecem que os réus da AP-470 foram condenados por um colegiado e perderam por 5×4. Não houve empate. Não houve necessidade da partida ser decidida nos penalties.
O jornalista chega ao cúmulo de comentar a idade da namorada do ministro Joaquim Barbosa. Diz que ela tem idade para ser filha do presidente do Supremo. E aí se traíu porque, mesmo bem informado, se “esqueceu” de criticar a recente escolha do ex-ministro José Dirceu, a quem defende. Em pleno julgamento do “Mensalão”, os jornais noticiaram que ex-líder estudantil e agora preso por decisão da mais alta corte do país, está namorando uma moça de 26 anos. Dirceu está chegando aos 70.
Depois das releituras do texto foi então que percebi e entrei em sintonia com o nome do blog. O jornalista, que mora na Europa, não deixa por menos. É o centro do mundo. Ou seja, o centro do seu mundo é branco, louro e fala inglês, de preferência. Uma escolha típica daqueles que sofrem o complexo de colonizado. Daqueles que acreditam ser a miscigenação uma bactéria ou um vírus que ataca os pobres da periferia do mundo.
O autor se esqueceu do fato de que ele mesmo é fruto da diversidade étnica do Brasil. Que em algum momento, seus antepassados praticaram a ousadia, o pecado, ou crime, de manter relações sexuais com pessoas “de cor”. E repete, quase como se fosse um mantra, as palavras de um juíz que se pronunciou no caso Richard e Mildred Loving: “O Deus Todo-Poderoso criou as raças branca, preta, amarela e vermelha e as colocou em continentes separados. Senão por interferência em seu arranjo não haverá causa para tais casamentos. O fato dele ter separado as raças mostra que ele não pretendia que raças se misturassem”.
Que 2014 limpe a poeira das intolerâncias porque “qualquer maneira de amor vale a pena/Qualquer maneira de amor valerá”
PARA MANDIBA, UM HERÓI
MEMÉLIA MOREIRA
Vai aqui minha homenagem a um herói da resistência. Nelson, para sempre Mandela. Esse texto foi escrito horas depois de visitar a casa de Mandela, em Soweto, e depositar flores no memorial erquido para lembrar o massacre das crianças em junho de 1976. Soweto era uma espécie de favela, quase um campo de concentração mantido pelo apartheid para isolar os negros. Fica entre Joannesburgo e Pretória. Escrevi chorando porque Soweto me mostrou a infinitude da maldade humana. Estava sentada no bar-restauranten “Casa di Stella”, onde terminei ficando pela noite para ouvir um jazz de raiz tocado por negros anônimos da etnia Zulu. Era 10 de março de 2000. VIVA MANDELA!
Segue aí meu texto depois de ujm dia de emoções naquele África de tantos sofrimentos:
SOWETO, SOWETO
Ruas de lata,
homens de luta.
Terra cinzenta de um povo da cor da noite.
Soweto! Sôgueto!
O mesmo soriso fácil das crianças do Jardin de Luxembourg, Hyde Park, Manhattan, Diauarum, Mekness, Lago Sul.
O mesmo alarido infantil nos uniformes em azul e branco, na saída da escola.
E foi ali que conheceram, o sangue, antes de conheceram a vida.
Too young to die, mas mesmo assim se foram naquele inverno de 1976.
Pobre menino negro e seu olhar perplexo.
Tinha 13 anos e carregava um corpo igual na cor, nos sonhos, na sina.
Meu corpo estremeceu no teu memorial e as bombas de petróleo ecoaram nos meus sentidos.
Soweto, My Lai, Puerto Cabezas, Haximu, Rocinha, Kosovo, Sabra, Chatila, Treblinka., minhas crianças que jamais crescerão.
Por que plantaram tantos hectares de ódios?
Soweto, do langor mississipiano, do sax das liberdades.
Soweto livre no batuque da ruas concretizando as utopias.
Soweto, desafio da pátria resistente, te entrego lágrimas e minhas mãos para dançarmos a ciranda nesta aldeia universal.
Soweto, meu povo, meu amor.
OBRIGADA, MANDELA!
SONS DA MINHA INFÂNCIA
“Todos cantam sua terra
Eu também vou
Cantar a minha
Modéstia à parte,
seu moço…
Minha terra é uma belezinha
……………………………………..
………………………………………
Acho bonito inté
O jornaleiro a gritar
Imparcial, Diário,
Olha O Globo
Jornal do Povo.
Descobriu novo roubo.
E os meninos vendendo
O derresol a cantar.
Derresol, deêê-êr-resol.”
(Baião de João do Vale, maranhense)
Foi no número 32 da Rua Coronel Mota, em Boa Vista, capital do antigo Território Federal do Rio Branco, hoje Roraima, que nasci na madrugada de 23 de outubro. Boa Vista era quase uma vila com menos de 30 mil habitantes e que eu só conheci aos 27 anos. Mas sou maranhense. De São Luís, “terra das palmeiras, terra das ladeiras, dos babaçuais”, canta o hino da cidade.
Digo que sou maranhense porque foi naquela ilha misteriosa e encantada pelas lendas e fantasmas que assutam as crianças que aprendi a ver o mundo. Aprendi a ler, aprendi a ouvir o som da chuva nos telhados e a acompanhar o movimento das águas do mar. Aprendi a pisar nas matas da Quinta do Barão de Itapary, sem fazer barulho e me esconder nos galhos mais altos das mangueiras e tamarindeiros. E lá ouvia o vento com seu murmúrio e as folhas que suavemente se despregavam dos galhos. E o som estacado das matracas do bumba-meu-boi. Salve salve, Mãe Catarina.
Nem precisava ver as ondas para saber se o mar estava bravio. Bastava ouvi-lo. Se manso, era um xuá-xuá, a escorrer para o infinito.
Da janela de minha escola, via os barcos de velas coloridas ancorados na areia porque a maré chega a ser tão baixa que era até possível atravessar o mar caminhando, como se fora terra firme, até chegar à praia Ponta D´Areia, trilha palmilhada pelas pegadas dos carangueijos. Sempre digo que quem teve o privilégio de olhar para um mar cheio de de barcos e suas velas coloridas se dirigindo ao Cais da Sagração, enquanto Madre Cabral, dorotéia do Colégio Santa Teresa, explicava, inutilmente, uma raíz quadrada, não tem o direito de ser infeliz.
Meus sonhos saltavam pela janela e se aninhavam entre as velas que tinham o poder de carregar minhas fantasias para todos os mares do mundo. E a raíz quadrada continuava lá, no quadro-negro. Imóvel, imutável, estéril. De números só me interessei por aqueles que me dizem em que latitude estou. Mas faço contas de cabeça, sem qualquer dificuldade e ainda sei que a raíz quadrada de 5 é 25.
É de São Luís que guardo os primeiros, e para sempre inesquecíveis, sons da minha infância e começo da adolescência. Sonoridade que vinha das ruas na voz dos vendedores. Sons do rádio ouvido pelas empregadas da casa. Som dos mambos, boleros e sambas-canção, fados, assoviavados pelo meu pai ou cantados por minha mãe. Som das serenatas feitas sob nossa janela e o som seco, dos linotipos sendo enfileirados na máquina para imprimir as folhas de papel do “Jornal do Povo”. Era matutino e mantido graças à tenacidade de meu pai, Geraldo, ou Gegê Moreira e meu tio, Neiva Moreira, o propritário incansável na sua luta contra todos os desmandos cometidos pelos governantes.
Os sons das ruas ressoavam na esquina de nossa casa, que por acaso era de propriedade do poeta Ferreira Gullar. Sons pontuais. Ninguém precisava de relógio. Infalíveis. Sempre.
Antes das oito da manhã, homens simples, quase sempre de pés descalços carregavam “cofos” (cestos de palha), de peixes e poesia. Lá vinham eles, roupa sem cor, gritando pelas ruas “Peeeeixe pedra natural/ quem pescou foi o Lourival”. Pelas dez da manhã, outros cofos carregados por outros homens também simples, pobres, descalços e poetas anunciavam aos brados…”Banana macia, dona Maria…É uma beleza, dona Teresa”. No cesto, banana-maçã, banana roxa, a melhor de todas as bananas, banana-nanica e, de vez em quando, banana-prata. Todas elas macias, para todas as Marias. Todas elas perfumadas ostentando beleza e sabor para o paladar de Teresas, Jandiras, Raimundas, Cândidas, Nazarés…
Mas o som mais esperado do dia, aquele que desestabilizava os papilos e antecipava a visão de um banquete no paraíso ecoava na hora da sesta.”….veeeeete de co´o….. Com um pequeno barril em forma de cone, que protegia uma lata cercada de panos grossos, o sorveteiro trazia na sua cabeça sobre uma rodilha quase imunda o legítimo manjar dos deuses. Sorvete de côco. E a casquinha desse sorvete é única. Só existe em São Luís. Nem mesmo os chineses conseguiram imitá-la. Artesanal, assada, crocante, adocicada. Quem teve o privilégio de tomar sorvete de côco naquela casquinha não tem o direito de ser infeliz.
Até hoje, quando chego em São Luís busco pelas ruas um sorveteiro gritando “….veeeete de co´o….”. Mas não. Eles não mais circulam pelas ruas da minha infância e me dou por vencida. Entro numa sorveteria perto do Colégio Santa Teresa, peço sorvete de côco na casquinha assada e me debruço no parapeito da avenida Beira-Mar para ver as velas dos barcos que transportaram minhas fantasias. As velas foram minha bússola e traçaram meus caminhos por tantos mares já “dantes navegados”.
“Fica comigo esta noite/E não te arrependerás/Lá fora o frio é um açoite/calor aqui tu terás….”. Era Nélson Goçalves cantando no rádio enquanto a engomadeira (hoje são apenas passadeiras, perderam a elegância das roupas engomadas e usam fone de ouvido para o celular), que era crente, fechava os olhos, quem sabe sonhando naquela proposta com sabor de fruto proibido.
Na cozinha,”tum-tum,ticu-tum-tumtum, paranpanpan”. Lá reinava Maria Raimunda, cozinheira que uma noite me levou, clandestinamente, para um tambor de mina. E ela requebrava os quadris sob o batuque frenético, às vezes repreendida por minha doce Vovó Amélia que preferia cantar valsinhas como se estivesse chilreando.
Bastava pegar a bicicleta e ir ao largo em frente à Biblioteca Municipal. Tinha orgulho daquela imponente construção, hoje entregue à inépcia das autoridades. E lá, ouvidos atentos escutavam a poesia de outros ambulantes. “Cocada, cocada da Bahia. Quem tem dinheiro compra, quem não tem espia. Olha a cocada, cocada da Bahia…” Eu me fartava naquela doçura incomparável. E me digo baixinho, quem teve o privilégio de deixar uma cocada da Bahia derretar no céu da boca não tem o direito de ser infeliz.
Lá pelos oito, nove anos, ás vezes saía da escola e ia para a sede do “Jornal do Povo”, um casarão antigo. Ficava um pouco na sala de papai, e descia, quase aos pulos, a escada que me levava ao porão onde estavam os linotipos. Clac-clac-clac os tipos (placas de chumbo com letras, sinais gráficos) estavam sendo posicionados, disciplinados e daí a pouco impressos em folhas de jornal. Era pura magia. Na tentativa de ajudar os linotipistas, sujava as mãos de tinta preta com cheiro forte. Agora, quando fecho os olhos para me lembrar daqueles momentos, o clac-clac-clac se espalha, inunda meus tímpanos, enquanto o cheiro da tinta preta invade meus sentidos e me devolve a doçura de um tempo de inocências. Quem teve o privilégio de sujar as mãos de tinta preta posicionando os tipos na máquina quente para imprimir um jornal combativo e ouvir o clac-clac-clac ritmado dos linotipos, não tem direito de ser infeliz.
Papai assoviava músicas de Nat King Cole. Era “Catito Mio”, “Que será, será”. Algumas vezes, cantarolava músicas do portorriquenho Perez Prado. Não me entediava com a repetição do “Mambo número 5” ainda mais sensual do que o famoso perfume Chanel usado por Marilyn Monroe para dormir. O mambo se infiltrava por minhas entranhas e, involuntariamete, me fazia dançar.
Cresci e me assalta a sensação de que ele assoviava quando estava preocupado com algum problema. Mas nunca cheguei a perguntar. Às crianças não era permitido conhecer os problemas dos adultos. Ele gostava de dançar e, quem sabe, o assovio o ajudava a ensaiar passos imaginárias. Nunca ouvi mamãe assoviando. Ela preferia cantar. Mas, bloqueada por um tipo de timidez que a impede de “soltar a voz na estrada”, nem sempre se fazia ouvir. Seu repertório é vasto e com ela aprendi muitas músicas belas e de rimas ricas. Cantava boleros, mambos, músicas românticas, gostava de ouvir o Trio Irakitan que, no meu aniversário de dez anos, tocou na nossa casa. E se bem me lembro, cantaram “Aquellos ojos verdes”.
“Lindo capullo de aleli. Se tú supieras mi dolor. Correspondieras a mi amor. E calmaras mi sufrir. Porque tú sabes que sin ti. La vida es nada para mi. Tú bien lo sabes. Capullito de aleli.” Ah…essa música do cubano Rafael Hernandez me traz as mais belas lembranças. Quantos anos eu tinha? Dez, onze, doze? Não sei. Só sei que era de madrugada e acordei quando papai e mamãe chegaram do baile.
Papai assoviava e conhecia bem o repertório do cubano Rafael Hernandez. Assoviava com todas as notas da escala musical o “Capullito de Aleli”. Sem parar. Os dois pareciam felizes. Deviam ter dançado muito. Eram bailes no Clube Jaguarema ou no Grêmio Lítero-Recreativo Português ou, simplesmente, Lítero.
Nossa casa era assim, cheia de música e um dos meus maiores prazeres era ver papai e mamãe se arrumando para ir a uma festa. Elegantes, perfumados, glamourosos, os dois provocavam admiração dos vizinhos que muitas vezes iam para suas janelas ver o casal saindo para noites de gala. E eles dançavam. Dançavam muito. E até cheiravam “rodó” (lança-perfume) no Carnaval. Não era proibido e nunca tive notícias de alguém ter morrido com uma overdose cheirando aquelas latinhas douradas da Rhodia. E sempre havia festas. Mamãe deslumbrante ao lado de papai que era vaidoso e usava camisas impecavelmente engomadas.
Além dos bailes, papai gostava de serenatas. Mais de uma vez fui acordada pelos irresistíveis violões. Mas não eram serenatas típicas porque no fim os músicos, acompanhados por meu pai sentavam-se à mesa da copa, comiam, bebiam e continuavam a cantar. Mesmo sonada, mamãe fazia as honras da casa. Não sei quantas vezes aconteceu. Não quero apostar quantas serenatas ouvi porque talvez seja traída pela fantasia infantil.
Na sala, no quarto, no banheiro, ou qualquer outro compartimento da casa, mamãe, se não estava debruçada sobre os livros, cantava. De todas as músicas aquela que diz “Acuerdate de Acapulco de aquella noche/Maria Bonita. Maria del Alma/Acuerdate que en la playa/con tuas manitas, las estrellitas/las enguajabas….”, do mexicano Agustin Lara é a que me traz as mais desencontradas emoções. Ela também cantarolava “Noche de Ronda”. E gostava de fados, essa música que não deixa dúvidas sobre a origem árabe do mundo português.
E quando nas longas marchas, algumas vezes solitárias, pelas matas da Amazônia, descubro que todos esses sons, essas músicas, os diferentes rítmos, a poesia dos vendedores de peixe, de bananas, sorvete, cocada, o radinho das empregadas, as matracas e tambores do bumba-meuboi, das folhas balançando na copa das mangueiras, tamarindeiros e abacateiros , do mar bravio ou manso, os assovios de papai, o cantar de mamãe e de vovó se impregnaram nas minhas células. E hoje distante da minha ilha, mantenho a certeza de que minha vocação para a felicidade foi moldada pelas doces sonoridades de uma infância venturosa. E peço vênia, poeta, mas eu era feliz e já sabia. E essa felicidade é tão profundamente enraizada que me permite sorrir das lembranças.
P.S. Até hoje, canto ou assovio e não me incomodo em desafinar.
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